8 de Setembro de 2008 ![]() “Drops sabor inspiração e cultura coloridos afetivamente.” “Drops de Pérolas 002” No começo, ninguém entendeu nada. Por que é que o professor de Educação Física cismou de trazer para disputar conosco, no nosso campo, um colégio de classe média alta num bairro chique de São Paulo, o time de uma escola estadual onde ele também dava aula? Logo nos primeiros minutos, a coisa ficou clara. Aqueles meninos sem uniforme, jogando descalços ou com uns tênis escangalhados, tinham um toque de bola de dar inveja. E na grama verdinha e bem cortada do colégio, a nossa seleção passou a levar chumbo grosso: 0 a 1; 0 a 2; 0 a 3; 1 a 3; 1 a 4; 1 a 5... Na arquibancada, a torcida começou a ficar impaciente. Sentado duas fileiras atrás de mim, estava um sujeito, um tipo enorme e boçal, com o qual eu já andava particularmente encrencado havia meses. Ele sempre me perseguindo, falando mal de mim, dando cascudos pelas costas. Seu nome era Malafiera, o apelido, Troglodita. A cada novo gol da estadual, ele xingava descaradamente o adversário: - Seu pé rapado, não tem dinheiro nem pra chuteira! - Ei cabeção, quer uma meia emprestada pra jogar? A cada drible novo: - Quer um trocado pro ônibus? Vem engraxar o meu sapato... Naquela época eu era um cara muito tímido. Na sala de aula ficava o tempo todo quieto, enfurnado. Numa discussão sempre dava a razão ao outro, mesmo quando, no fundo, sabia que eu estava certo. Até para os amigos eu sentia vergonha de dizer como tinha chegado sozinho à solução de um problema de matemática que o professor nem havia explicado. Por isso todo mundo se surpreendeu quando, na quarta ou quinta vez que o Troglodita berrou, eu virei para trás e tasquei: - Você é que é um bestalhão! Acha que todo mundo já nasce jogando de uniforme? O brutamontes suspendeu o próximo xingamento no ar e ficou parado, procurando aquela voz que o ofendia. Quando me encontrou, não quis acreditar que eu pudesse ter dito aquilo. - O que foi que você disse? Se repetir eu lhe quebro a cara... Pois eu mirei nos olhos e mantive: - É isso mesmo, seu bocó preconceituoso. Acha que dinheiro vale muita coisa, mas... Nem precisei terminar a frase. O Malafiera saltou duas fileiras e num instante ia por as mãos no meu pescoço. Não sei o que me deu, desviei o corpo e, sem pensar, desferi um soco no seu peito. Ele levou um segundo, um segundo e meio, para se recuperar. Não do soco, mas do susto de ser agredido por um fracote como eu. E foi nessa fração de segundo, que eu escapei. Saltei da arquibancada e saí correndo em ziguezague pelo gramado com a besta enfurecida atrás de mim. Ah, como era bom desafiar aquela fera que me perseguira o ano inteiro e que eu nunca sonhara um dia ter coragem para desafiar... Ah, como era bom zombar do perigo e encher o peito de coragem! Que alegria! Até hoje me lembro do alívio e da euforia que tomaram conta de mim enquanto chispava pelo campo... Verdade que, por trás desses sentimentos, estava o fato de que eu era muito mais rápido do que ele. Nós poderíamos correr até a meia-noite que ele jamais me alcançaria. Mas eu não contava com o resto da classe. Estes, sedentos por uma briga, se lançaram todos na minha captura. Até que me cercaram. Naquele momento, enquanto eu ia sendo empurrado pelos meus colegas para o combate final – assim como um cristão era arrastado para a arena pelos romanos para dar combate aos leões –, aconteceu uma coisa muito importante. Eu descobri que entre o medo e a coragem existe uma linha muito fina. Quando a gente a atravessa, é como se do outro lado houvesse uma reserva de força, prontinha, à nossa espera. Além disso, percebi que o medo e a coragem funcionam como uma gangorra. Numa luta, o medo de um alimenta a coragem do outro e vice-versa. Por isso, quando me vi cara a cara com Malafiera, o Troglodita, o medo que eu sentia era bem menor do que o medo que eu achava que sentiria. Era um medo nanico, bastante administrável, que nem se comparava à imensa energia da coragem que havia transformado a minha vida minutos antes. E como um prêmio à minha coragem, justo nessa hora soou o apito do seu Vitório, o porteiro. Era ele que chegava, estranhando aquela aglomeração de alunos e tratando logo de dispersar o bando. Sabe o que aconteceu depois? Voltamos todos para a arquibancada a tempo de assistir o nosso time perder de lavada. Eu evitei o Malafiera por uns dois ou três dias. Ele passou a descarregar a sua raiva inútil sobre outros garotos e simplesmente se esqueceu de mim. Mas eu nunca me esqueci dele. Nem daquela partida. Nunca esqueci que entre o medo e a coragem existe uma linha muito fina – e só quando a gente a atravessa é que a vida começa de verdade. Alberto Martins, baseado em história da infância de Roberto Pompéia. |
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